Gotas dum orvalho pobre
Mas ainda vale a pena.
Fazer um poema nobre
Não há poema sem som
Não há poema sem som
Que nos diga o que não quer
Não há casamento bom
Não há casamento bom
Sem uma boa mulher
Não há cidade sem luz
Não há cidade sem luz
Não há luz sem claridade
Não há Cristo sem ter cruz
Não há Cristo sem ter cruz
Em nome da felicidade
Não há tigela sem sopa
Não há tigela sem sopa
Não há sopa sem repolho
Não há corpo sem ter roupa
Não há corpo sem ter roupa
Não há rei sem ter um olho
Não há filme sem cinema
Não há filme sem cinema
Nem cinema sem atriz
Não há revolta sem tema
Não há revolta sem tema
Não há tema sem raiz
Não há luto sem consolo
Não há luto sem consolo
Não há choro sem promessa
Não há cabeça sem tolo
Não há cabeça sem tolo
Quando o tolo tem cabeça
Não há jogo sem apito
Não há jogo sem apito
Não há golo sem baliza
Não há feio sem bonito
Não há feio sem bonito
Nem gravata sem camisa
Não há caneta sem tinta
Não há caneta sem tinta
Não há navalha sem fio
Não há doutor que não minta
Não há doutor que não minta
Nem há vela sem pavio
Não há boca sem segredo
Não há boca sem segredo
Não há segredo sem voz
Não há país sem degredo
Não há país sem degredo
Não há rio sem ter foz
Não há urna sem jazigo
Não há urna sem jazigo
Não há defunto sem campa
Não há crime sem castigo
Não há crime sem castigo
Não há declive sem rampa
Não há gravidez sem filho
Não há gravidez sem filho
Não há filho sem ter mãe
Não há guerra sem sarilho
Não há guerra sem sarilho
Não há rico sem vintém
Não há avião sem asa
Não há avião sem asa
Mesmo telecomandado
Não há telhado sem casa
Não há telhado sem casa
Mas há casas sem telhado
Não há piscina sem fundo
Não há piscina sem fundo
Não há vedeta sem fama
Não há pessoas sem mundo
Não há pessoas sem mundo
Mas há pessoas sem cama
Não há rua sem saída
Não há rua sem saída
Não há bilhetes sem nome
Não há fartura escondida
Não há fartura escondida
Mas há pessoas com fome
Não há banco sem dinheiro
Não há banco sem dinheiro
Não há rico sem Mercedes
Não há festa sem terreiro
Não há festa sem terreiro
Mas há casas sem paredes
Não há luar sem estrelas
Não há luar sem estrelas
Não há nuvem sem receio
Não há casa sem janelas
Não há casa sem janelas
Nem há rua sem passeio
Não há nobreza que chegue
Não há nobreza que chegue
Para rimar a tristeza
Nem há rima que não pegue
Nem há rima que não pegue
Pelos cornos da nobreza
Confesso, aqui e agora
Confesso, aqui e agora
Que não há, mesmo que eu queira
Uma alma benfeitora
Uma alma benfeitora
Que leia tanta besteira!